Como ajudar crianças com TEA a cumprir instruções em etapas: prática guiada, rehearsal e controle conjunto

A boa notícia é que esse tipo de coordenação pode ser ensinado. Há dois conceitos que ajudam muito aqui. O primeiro é o rehearsal (ou “ensaio”), que nada mais é do que repetir para si, em voz alta, sussurrando ou mentalmente, aquilo que foi pedido. O segundo é o joint control (controle conjunto), que é o momento em que a repetição que a criança está mantendo, por exemplo, “caderno… mochila… cabide…”, encontra o mesmo nome no ambiente; ao ver o caderno e dizer “caderno”, acontece um “clique” que orienta a ação. Tecnicamente, esse encontro junta um ecoico (dizer igual ao que ouviu) com um tato (nomear o que vê), e é essa coincidência que dispara a resposta correta.

 

Por que instruções se perdem no caminho?

Quando não ensinamos explicitamente a manter a instrução “viva” e a coordená-la com os estímulos do ambiente, a criança tende a esquecer, inverter a ordem ou interromper no meio do caminho. Treinar rehearsal e reconhecer o “clique” do joint control organiza essa coordenação.

Conceitos-chave: rehearsal, ecoico, tato e joint control

    • Rehearsal (ensaio): repetir para si a instrução (em voz alta, sussurrando ou mentalmente).
    • Ecoico: “dizer igual” ao que foi ouvido (parte crucial do rehearsal).
    • Tato: nomear aquilo que se vê/encontra no ambiente.
    • Joint control: quando o ecoico em andamento encontra o mesmo estímulo nomeado no ambiente (tato), gerando um “salto” de controle que produz o clique para agir.

O que a evidência mostra

Quando ensinamos explicitamente a repetir e a proteger essa repetição até chegar nos objetos, o desempenho melhora de modo evidente. Em estudos com crianças de 5–6 anos com TEA, treinar o ecoar das instruções e manter esse ecoico durante pequenos atrasos, como atravessar um corredor até a sala onde estão os itens, levou as crianças a cumprir instruções novas, com duas ações, já na primeira tentativa. O efeito generalizou para combinações diferentes, apareceu também em casa e se manteve ao longo do tempo. Em termos práticos, isso quer dizer que não estamos ensinando a “decorar frases”, e sim instalando um processo: repetir, sustentar a repetição durante o deslocamento e deixar que o ambiente confirme cada parte da lista até concluir a sequência.

Como aplicar (clínica e casa): procedimento

Na aplicação clínica ou em casa, o procedimento é simples: o adulto dá a instrução curta e clara, pede que a criança repita “igual” e convida a manter essa repetição baixinha enquanto se desloca. Em alguns casos, vale programar um pequeno atraso de dez a quinze segundos antes de liberar a busca, exatamente para praticar sustentar o ensaio sem perder a sequência. Ao encontrar o primeiro item, a criança normalmente verbaliza ou pensa “caderno”, o que produz o tal “clique” do joint control, pega o objeto e segue para o próximo. Quando a sequência sai correta, o reforço precisa acontecer imediatamente, com elogio específico e, se for o caso, a consequência combinada (ficha, token ou acesso a uma atividade breve). Se houve erro, a correção é tranquila: reapresenta-se a instrução sem bronca, reduz-se a complexidade (menos itens ou itens mais visíveis) e aumenta-se o apoio de repetição, até que a cadeia volte a fluir. A meta pedagógica não é que o adulto fique lembrando a criança o tempo todo, mas que a própria criança aprenda a manter a “lista” viva até o ambiente confirmar cada passo.

Protegendo o rehearsal de distrações verbais

Proteger o rehearsal nesses segundos críticos é essencial. Há pesquisas mostrando que, quando a instrução é verbal, pedir que a pessoa fale outra coisa ao mesmo tempo, por exemplo, que recite o alfabeto enquanto executa, derruba a taxa de acertos de forma significativa. Em contrapartida, quando a ordem está visível como um modelo à frente, bloquear a fala não causa o mesmo prejuízo. Tradução prática: ao caminhar para cumprir a instrução, evite conversas paralelas, cantorias ou perguntas de terceiros; incentive a criança a sussurrar a própria lista, usando marcadores simples como “primeiro… depois… por fim…”, e reduza ruídos do ambiente sempre que possível.

Progressão e critérios de avanço

A progressão pode começar básica e ganhar exigência conforme a criança fica fluente. Primeiro trabalhamos uma ação com dois a três objetos visíveis, apenas para instalar o ciclo repetir > clicar > agir. Em seguida, espalhamos os itens em locais diferentes para treinar deslocamento com manutenção do ecoico. Depois encadeamos duas ações separadas por atrasos curtos (ex.: “pegue o caderno; pendure a mochila no cabide”). Por fim, variamos salas, pessoas que dão a instrução e objetos “novos”, de modo que a criança não dependa de um cenário único para acertar. O avanço de nível acontece quando os acertos ficam estáveis (≈80%-100%) por duas ou três sessões, enquanto retiramos, passo a passo, os prompts de repetição do adulto (modelo > sussurro junto > “lembra de repetir?” > silêncio).

Adaptações quando a fala é limitada (inclui CAA)

Se a fala é limitada, o princípio continua válido com outras topografias de ensaio: gestos (um dedo = “primeiro”, dois = “depois”), toques em cartões/figuras na ordem, marcadores visuais simples no caminho ou, com CAA, tocar a sequência de símbolos no app/prancha antes e durante o deslocamento. Em todas as variações, buscamos o mesmo fenômeno: sustentar uma cadeia de estímulos até que o ambiente ofereça a confirmação e produza o clique que guia a resposta.

Monitoramento simples de progresso

Registre em blocos de tentativas (por exemplo, 10 por sessão): acerto/erro e se precisou de ajuda (nenhuma, mínima, moderada, máxima). Use a regra de avanço acima e documente quando o prompt pôde ser reduzido. O objetivo final é a criança cumprir instruções novas, com pouco ou nenhum prompt, em ambientes diferentes.

Colaboração entre família, escola e clínica

Combine como pedir a repetição, quando reforçar e como fazer fading, evitando mudar a regra no meio ou dar instruções longas em lugares ruidosos. Essa consistência reduz erros e acelera a autonomia.

Conclusão

Cumprir instruções em etapas não é “apenas obedecer”; é organizar a ação. Ao ensinar a criança a manter sua própria “lista” e a reconhecer o clique quando encontra cada item, criamos um caminho de autonomia que tende a se manter e a se generalizar, com cada vez menos ajuda do adulto.

 

Referências

Ratkos, T., & Camacho, M. (2023). The Effects of Vocal Blocking on Sequencing Visual and Tactile Stimuli. The Analysis of Verbal Behavior, 39, 226–246.
Vosters, M. E., & Luczynski, K. C. (2020). Emergent completion of multistep instructions via joint control. Journal of Applied Behavior Analysis.

 

Autor do post:
Luiz Kennedy de Almeida Silva – Psicólogo (CRP:13/9162), Pedagogo especializado em Psicopedagogia, Coordenador ABA.

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