Na mitologia grega, a Hidra de Lerna era uma criatura com várias cabeças. A cada vez que uma cabeça era cortada, duas outras nasciam no lugar — tornando a luta contra ela quase interminável. Essa imagem pode ser uma metáfora poderosa para o desafio da rigidez comportamental em crianças com TEA.
Na prática clínica com crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), a rigidez comportamental muitas vezes se comporta como essa Hidra. Eliminamos um comportamento repetitivo, e outros surgem: novos rituais, resistências ou formas de controle. Isso acontece porque, ao focar apenas na redução de comportamentos, esquecemos de ensinar repertórios mais amplos e adaptativos.
Por que ensinar flexibilidade importa?
Flexibilidade é uma habilidade operante — ou seja, pode ser ensinada, reforçada e generalizada. Ela permite que a criança:
- Se adapte a mudanças inesperadas;
- Emita diferentes respostas para um mesmo estímulo;
- Crie novas soluções diante de um obstáculo;
- Amplie suas possibilidades de interação social, acadêmica e funcional.
Agora, veja algumas atividades práticas e simples para começar esse processo:
Atividades para Promover Flexibilidade
1. Troca de Ordem nas Atividades
Objetivo: Ensinar que mudanças na rotina podem acontecer — e que tudo bem quando isso acontece.
Como aplicar:
- Use a agenda visual (ou pictogramas) normalmente, mas troque pontualmente a ordem de dois itens.
- Avise com antecedência: “Hoje vamos fazer massinha antes da história, ok?”.
- Mantenha a mudança pequena no início e aumente gradualmente.
Exemplos práticos:
- Trocar o lanche de lugar com o momento de leitura.
- Fazer a brincadeira antes da atividade estruturada.
- Trocar a terapeuta do dia (com aviso e reforço).
Dica: Sempre reforçar qualquer aceitação da mudança, mesmo que com leve resistência.
2. Variar o Uso dos Mesmos Brinquedos
Objetivo: Reduzir o uso repetitivo e fixo de objetos, promovendo criatividade e função simbólica.
Como aplicar:
- Apresente o mesmo brinquedo e diga: “Hoje vamos brincar de um jeito diferente!”.
- Modele novas formas de brincar — e espere uma tentativa da criança.
- Reforce qualquer tentativa de variabilidade, mesmo que com ajuda.
Exemplos:
- Carrinho: correr, abastecer, esconder, empilhar.
- Massinha: cobrir objetos, imitar comida, fazer letras.
- Blocos: construir casa, classificar por cor, fingir que são comida.
- Bonecos: simular uma ida ao médico, contar histórias, dar banho.
Importante: A variabilidade pode ser ensinada e deve ser reforçada com entusiasmo!
3. Escolha entre Duas Opções
Objetivo: Ensinar que existem várias formas válidas de fazer algo, desenvolvendo autonomia e aceitação de alternativas.
Como aplicar:
- Ofereça duas opções reais e válidas. Exemplo: “Você prefere desenhar ou brincar de massinha?”
- Reforce a escolha, mesmo que a criança tenha preferência sempre pela mesma coisa — e vá variando com o tempo.
Exemplos práticos:
- Escolher a ordem das tarefas.
- Escolher o reforçador da sessão.
- Escolher o terapeuta (em dias em que há dois disponíveis).
Dica: Se a criança resistir a uma escolha que não está disponível, ofereça uma alternativa próxima e reforce a aceitação.
4. Recontar Histórias com Finais Diferentes
Objetivo: Trabalhar flexibilidade cognitiva e relacional, promovendo respostas variadas e criatividade verbal.
Como aplicar:
- Leia uma história conhecida com a criança.
- Ao final, pergunte: “E se o personagem tivesse feito outra coisa?”
- Incentive a criação de um novo final. Exemplos: “E se o Chapeuzinho Vermelho tivesse ido por outro caminho?”, “O que mais o dinossauro poderia fazer no parque?”, “Vamos fazer um final onde o personagem fique feliz de um jeito diferente?”
Dica bônus: Use fantoches ou massinha para encenar os finais alternativos. Isso torna tudo mais concreto e divertido!
Conclusão
Lidar com a rigidez comportamental não é apenas “cortar cabeças da Hidra”. É preciso ensinar respostas novas, ampliar possibilidades, reforçar cada pequeno passo fora do padrão repetitivo.
Promover flexibilidade é abrir caminho para mais autonomia, socialização e qualidade de vida. E isso se faz um comportamento de cada vez, com intenção, paciência e reforço.
Referência:
Faria, K. T., Teixeira, M. C. T. V., Carreiro, L. R. R., Amoroso, V., & Paula, C. S. de. (2018). Atitudes e práticas pedagógicas de inclusão para o aluno com autismo. Revista Educação Especial, 31(61), 353–370.
Autor do post:
Bruna Araújo – Pedagoga, especialista em Análise do Comportamento Aplicada e Coordenadora ABA
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