Sobrecarga materna, cotidiano e seletividade alimentar: qual a relação?

O estudo “Esse menino não come – Narrativas de mães sobre seletividade alimentar e autismo” (Uchoa et al., 2024) dá voz a mães que vivenciam no dia a dia as dificuldades alimentares dos filhos. A pesquisa buscou compreender, por meio de entrevistas, como essas mulheres percebem e lidam com a seletividade alimentar em seus filhos — e os impactos que isso tem em sua saúde emocional, suas rotinas e seu papel como principais cuidadoras.


Como tudo começa: os primeiros sinais

Segundo as participantes, os sinais da seletividade alimentar aparecem cedo, ainda no período de aleitamento e introdução alimentar. Dificuldades de sucção, recusa do seio ou da colher e vômitos frequentes já eram observados por muitas dessas mães desde os primeiros meses de vida da criança. Ao longo do tempo, esses sinais se intensificavam e passavam a ser acompanhados de comportamentos como choro, ansiedade e recusa persistente de alimentos — especialmente frutas, legumes e texturas mais sólidas.

Com o tempo, surgiram também outros sinais de alerta, como atraso na fala, baixo contato visual e dificuldades motoras, que, mais tarde, culminaram no diagnóstico de autismo. Esse momento era marcado por sentimentos ambíguos: culpa, medo, alívio e até gratidão por finalmente entenderem o que estava acontecendo.


A hora da refeição: um momento de estresse e sobrecarga

O que deveria ser uma atividade prazerosa — oferecer alimento ao filho — torna-se, para essas mães, um momento carregado de ansiedade, frustração e até sofrimento. Elas relataram que, muitas vezes, apenas o preparo da refeição já provoca tensão. A recusa alimentar é sentida como uma falha pessoal, e o esforço constante para garantir uma nutrição mínima consome tempo, energia e saúde mental.

Essa rotina faz com que muitas mães abandonem seus próprios projetos, empregos e até o autocuidado. Elas se veem ocupando exclusivamente o papel de cuidadora, gerando uma sobrecarga emocional intensa. Em alguns casos, o sentimento é de que apenas elas são capazes de alimentar os filhos da forma correta, aprofundando ainda mais o isolamento.


O papel da Terapia Ocupacional

A seletividade alimentar, como apontado no estudo, é uma condição multifatorial que compromete diretamente o desempenho ocupacional da criança e de sua mãe. Um dos trechos do artigo destaca:

“A seletividade alimentar se configura como uma condição que compromete a participação da criança e da mãe em ocupações e papéis ocupacionais próprios. A criança sofre o impacto de não conseguir desempenhar adequadamente a ocupação de comer, enquanto a mãe se vê impossibilitada de desempenhar sua ocupação de alimentar. Juntos, mãe e filho, vivenciam o desafio de participação na co-ocupação de alimentar e ser alimentado.” (Uchoa et al., 2024, p. 3)

É nesse cotidiano que a Terapia Ocupacional encontra-se como facilitadora do processo. O terapeuta ocupacional possui um olhar atento ao contexto, observando e analisando quais fatores estão atuando enquanto barreiras nessas ocupações, percebendo como as dificuldades sensoriais, comportamentais e emocionais interferem na alimentação da criança. Além disso, a Terapia Ocupacional pode atuar junto à família, considerando os papéis, rotinas esobrecargas vividas pelos cuidadores.

Além disso, é importante destacar que a alimentação possui aspectos interdisciplinares, e que deve ser investigada e analisada em suas especificidades para favorecer a participação ativa da criança no ato do comer. Um trecho do estudo reforça a promoção do cuidado em equipe:

“A equipe interdisciplinar tem papel relevante nessa investigação, em especial o terapeuta ocupacional, na compreensão e intervenção voltada ao desempenho ocupacional humano, suas ocupações, papéis e cotidiano, bem como o domínio das funções sensoriais, e da relação entre seletividade alimentar e alterações sensoriais.” (Uchoa et al., 2024, p. 16)


Conclusão

O estudo ainda aponta que muitas mães buscaram ajuda profissional desde cedo, mas não se sentiram acolhidas. Frases como “cada criança tem seu tempo” ou “isso é normal” foram comuns — dificultando o acesso a intervenções adequadas e aumentando os sentimentos de culpa e solidão.

Além do acompanhamento clínico, elas encontraram apoio valioso na troca com outras mães que vivenciam situações parecidas. Esses espaços de escuta, empatia e troca de estratégias foram reconhecidos como fundamentais para manter o cuidado e a saúde emocional.

Portanto, a seletividade alimentar trata-se de uma condição complexa, impactando profundamente o bem-estar da criança e dos seus familiares. Para que seja possível uma intervenção eficaz, é necessário estar atento e obter um olhar sensível aos relatos desse cotidiano, atravessado por emoções diversas, que corroboram para a dificuldade na participação social dessas famílias. Assim como, promover que esses relatos sejam acolhidos e validados.

Referência:

Uchoa, B. K. P., Araújo, A. E., Menescal, J. V ., & Leite, A. J. M. (2024). “Esse menino não come” Narrativas de mães sobre seletividade alimentar e autismo. Cadernos Brasileiros de TerapiaOcupacional, 32, e3848. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO396738481

Autor do post:
Lua Zayra
– Terapeuta Ocupacional (26142-TO), especializada em Análise do Comportamento Aplicada (ABA) e Estimulação Precoce em crianças com atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor.

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