Para muitas famílias, a habilitação marca um salto de autonomia: trabalhar, estudar, encontrar amigos sem depender de terceiros. No TEA sem deficiência intelectual, essa transição pode ser viável e segura, desde que com preparo, mas costuma acontecer em um ritmo diferente e exige decisões cuidadosas antes de “pegar no volante”.
A seguir, resumimos o que a pesquisa longitudinal mais citada sobre o tema encontrou, trazemos dados recentes sobre perfil de risco em acidentes e traduzimos isso em passos práticos para clínicas, escolas e famílias.
O que os dados longitudinais mostram
Um estudo retrospectivo nos EUA vinculou prontuários pediátricos a uma base estadual de habilitação para acompanhar mais de 52 mil jovens, incluindo 609 com TEA (sem DI). Dois achados centrais:
> Proporção e tempo para habilitar-se: Cerca de 1 em cada 3 jovens com TEA obtém carteira até os 21 anos (contra 83% dos pares), em média 9 meses depois do ritmo típico; a curva do TEA cresce mais devagar tanto para a permissão de aprendiz quanto para a licença em si.
> Persistência após iniciar o processo: Entre jovens com TEA que chegam a tirar a permissão, 90% avançam para a licença em até 2 anos (ou seja, a maioria das decisões de “vai ou não vai dirigir” ocorre antes mesmo do primeiro volante). Uma vez elegíveis, eles progridem quase no mesmo ritmo até a licença plena.
Em termos práticos: famílias e equipes devem antecipar a conversa (12–15 anos) e organizar um plano de habilidades pré permit (pré-permissão), ao invés de decidir “em cima da hora”.
E quanto à segurança no trânsito?
Evidências recentes indicam que motoristas autistas recém-habilitados não se envolvem em mais acidentes do que seus pares, mas o tipo de ocorrência difere. Análises de prontuários ligados a bancos de trânsito apontam que jovens autistas:
> são menos propensos a colisões por velocidade insegura;
> são mais propensos a acidentes em manobras de conversão (ex.: conversões à esquerda/U-turns), que exigem tomada de decisão rápida sob múltiplos estímulos.
Isso sugere um perfil de forças e desafios: adesão a regras e prudência costumam ser pontos fortes; já a integração visuo-espacial, atenção dividida e planejamento de manobras complexas pedem treino específico.
Brasil: o que diz a legislação e as diretrizes clínicas
No Brasil, não há restrição legal que impeça pessoas no espectro de obter a CNH. A habilitação depende do desempenho nos exames (médico, psicossocial e prático), como para qualquer candidato. Diretrizes da Abramet orientam o médico-perito a avaliar caso a caso, considerando comorbidades, medicações e comportamento de risco, sem pressupor impedimento automático pelo diagnóstico de TEA.
(Observação: há debates legislativos esporádicos sobre adaptações no exame prático; quando houver mudanças efetivas, elas saem em resoluções do Contran ou normas dos Detrans.)
Como a clínica pode organizar um caminho seguro (pré-CNH > CNH > direção independente)
1) Conversa e triagem antes da idade mínima Janela crítica: meses anteriores à elegibilidade para a permissão. Nessa fase, famílias costumam decidir se o jovem vai tentar dirigir. Leve o tema para a pauta de supervisões e reuniões com escola.
Roteiro de triagem: atenção sustentada e dividida; funções executivas
(planejamento, inibição, monitoramento de erro); integração visuo-espacial; tolerância a frustração; resposta a imprevistos; histórico de crises/blackouts; adesão a regras e rotinas.
2) Treino de habilidades pré-dirigir (fora do carro) Percepção de perigos: jogos e vídeos para treinar varredura visual (olhos-retrovisor-olhos), antecipação de ameaças e priorização de estímulos.
Funções executivas: tarefas de dupla demanda (ouvir instrução enquanto executa rota), tempo de reação, alternância de atenção.
Regulação emocional: protocolos para “plano B” em frustração (errando marcha, apanhando em cruzamentos).
Linguagem social: scripts para interação com instrutor, blitz, posto de gasolina.
3) Treino no veículo (com adaptações) Sequência didática: começar por rotas previsíveis de baixa complexidade > adicionar
interseções controladas > praticar exaustivamente conversões à esquerda em horários de baixo fluxo > introduzir mudanças uma a uma (noite, chuva, vias rápidas).
Foco em tomada de decisão sob múltiplos estímulos, por ser um ponto sensível. Ferramentas clínicas: instrução em “pensar em voz alta”, checklists de pré-partida, mapas visuais do trajeto, timers para pausas programadas. Profissionais especializados: quando possível, encaminhar para instrutores de direção reabilitadora/terapeutas ocupacionais com foco em direção. (Em contextos internacionais, o CDRS estrutura esse tipo de intervenção.)
4) Acompanhamento pós-CNH Meta clara: direção independente e segura, não apenas “passar na prova”.
Dados de processo: quilometragem guiada por semana, variedade de cenários (chuva/noite/rotas novas), incidentes sem dano, autorrelato de carga mental.
Ajustes finos: se surgirem incidentes em conversões e saídas de via, retorne a cenários controlados e reensine tomada de decisão em interseções.
“Vai dirigir agora ou é melhor esperar?”, como um quadro rápido de decisão.
Prosseguir agora, com plano de treino, quando:
- o jovem respeita regras, aceita feedback e demonstra melhora com prática estruturada;
- há suporte familiar para prática frequente (ex.: 3x/semana, trajetos curtos e planejados);
- comorbidades (TDAH, ansiedade) estão minimamente controladas.
Adiar e intervir antes, quando: - há impulsividade marcada, baixa tolerância a erro ou descumprimento de regras;
- crises sensoriais/emocionais frequentes em ambientes imprevisíveis;
- uso de substâncias/medicações com efeitos sedativos não estabilizados;
- não há condições logísticas para prática distribuída (prática ocasional não consolida perícia).
Dicas simples que fazem diferença - Uma mudança por vez. Introduza um elemento novo (ex.: direção noturna) apenas quando o anterior estiver estável.
- Rotas com “pontos-âncora”. Marque referências visuais (postos, praças, passarelas) para reduzir sobrecarga de memória.
- Checklist visível no painel (partida/retrovisores/cinto/freio de mão/drive).
- Ensine “parar para pensar”. Se algo fugiu do script, encostar com segurança é habilidade-chave (regras > orgulho).
- Treine conversões à esquerda em dias/horários de baixo fluxo, progredindo para cenários mais complexos (rotatórias, múltiplas faixas).Os dados apontam que muitos jovens no espectro conseguem dirigir, desde que em ritmo próprio e com instrução deliberada. O ponto mais importante não é “se” dirigir, mas como preparar a jornada para que a direção aumente oportunidades (emprego, estudo, vida social) sem aumentar riscos. A conversa começa cedo; o treino é incremental; e a clínica pode coordenar tudo isso com escola, família e autoescola.
Referências
Curry, A. E., Yerys, B. E., Huang, P., \& Metzger, K. B. (2018). Longitudinal study of driver licensing rates among adolescents and young adults with ASD. Autism, 22(4), 479–488.Children’s Hospital of Philadelphia – Teen Driver Source. Autism and Driving Curry, A. E., et al. (2021). Comparison of Motor Vehicle Crashes, Traffic Violations, and License Suspensions Between Autistic and Non-Autistic Adolescent and Young Adult Drivers.
Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego). Diretriz: TEA e Habilitação Assistive Technology Outcomes \& Benefits (2020). Driver Rehabilitation \& CDRS
Autor do post:
Luiz Kennedy de Almeida Silva – Psicólogo (CRP:13/9162), Pedagogo especializado em Psicopedagogia, Coordenador ABA.




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