Entrevista Diagnóstica do Autismo (ADI-R): o que é, para que serve e por que as clínicas deveriam usar

O ADI-R não é “um questionário de internet”. Ele foi construído por três nomes centrais na área – Michael Rutter, Catherine Lord e Ann Le Couteur – e segue os mesmos eixos que aparecem nas classificações diagnósticas (DSM e CID): interação social recíproca, comunicação/linguagem e padrões restritos e repetitivos de comportamento. A versão que você tem aí está traduzida para o português e já traz toda a lógica de aplicação, códigos e instruções de entrevista.

Vamos por partes.

    1. O que o ADI-R faz de diferente?
      A grande sacada do ADI-R é: não basta perguntar “ele faz isso?” e marcar sim ou não. A entrevista foi desenhada para que o profissional peça exemplos, descreva episódios e registre o comportamento real que o cuidador narra. Só depois disso é que ele atribui o código (0, 1, 2, 3…). Ou seja: quem decide a pontuação não é o pai, é o entrevistador – com base no que o pai descreveu. Isso dá muito mais consistência entre profissionais diferentes.
      Além disso, a entrevista pede descrições de comportamentos no passado (por volta dos 4–5 anos) e no momento atual. Por quê? Porque muitas crianças mais velhas vão amadurecendo e “apagando” traços mais gritantes, e se o profissional olhar só o agora, perde o padrão típico de autismo que apareceu na fase pré-escolar. O manual fala disso com todas as letras: focar de 4 a 5 anos é o jeito mais comparável de olhar para casos diferentes.
    1. Para quem ela foi feita?
      Para o cuidador que conhece bem a criança – normalmente mãe, pai ou alguém que acompanhou o desenvolvimento desde cedo. O objetivo declarado do manual é: “obter uma descrição detalhada dos comportamentos requeridos para o diagnóstico diferencial dos Distúrbios Pervasivos do Desenvolvimento, especialmente o autismo infantil”. Então não é uma anamnese genérica: é uma entrevista que força o cuidador a voltar no tempo e dizer “quando foi que você percebeu que algo estava diferente?” (idade em meses!), “o que veio primeiro, a fala atrasada ou o pouco interesse social?”, “ele já apontava para mostrar algo?”. Essa precisão de tempo é o que muitas vezes falta na anamnese comum.
    1. Como a entrevista é organizada?
      O ADI-R é grandão mesmo. O índice do manual mostra isso: começa com antecedentes, história familiar, história médica e escolar, passa por perguntas introdutórias e depois mergulha nas três áreas diagnósticas. No meio, ainda pega marcos motores, treino de esfíncteres, regressões e até habilidades especiais. Em resumo, ele coleta:

– Antecedentes e contexto familiar
Para o entrevistador entender quem são os irmãos, se há outros com atraso, se há adoção, se alguém na família tem algo parecido. Isso ajuda muito na comparação (“ele falou depois que os irmãos?”, “era mais distante do que os primos?”).

– Início dos sintomas
O manual pede idade em meses da primeira preocupação e o que foi que chamou atenção: fala, social, comportamento estranho, problema médico. Isso porque, no autismo, a qualidade da interação social costuma ser uma bandeira muito cedo, mesmo que ninguém tenha chamado de autismo na época.

– Comunicação e linguagem
Aqui o ADI-R é super minucioso: pergunta se a criança usava o corpo do outro como ferramenta, quando falou as primeiras palavras, quando fez frases, se tinha ecolalia imediata, se usava frases estereotipadas, se havia inversão de pronomes, se havia entonação diferente, se apontava para mostrar interesse, se imitava espontaneamente. Esses são exatamente os detalhes que muitas vezes os pais lembram (“ele pegava minha mão e me levava”, “ele repetia os diálogos do desenho”) e que fazem diferença no diagnóstico.

– Desenvolvimento social e jogo
Contato visual, sorriso social, mostrar para compartilhar, oferecer para partilhar, procurar consolo, responder ao prazer do outro, brincar de faz de conta, brincar com outras crianças, interesse em pares, fazer amizades… É aqui que muitos quadros que parecem só atraso de linguagem acabam mostrando que também havia dificuldade de reciprocidade.

– Interesses e comportamentos
Interesses circunscritos, preocupação com partes de objetos, resistência a mudanças pequenas, rituais, ligações incomuns a objetos, respostas sensoriais diferentes, maneirismos de mãos, balanceios. É o bloco que captura o “jeito autístico de se comportar” que vai além de atraso de fala.

– Comportamentos gerais e perdas
O ADI-R ainda pergunta por regressão – perda de linguagem ou de habilidades sociais depois de já ter adquirido – e por duração da perda (tem que ter durado pelo menos 3 meses para entrar). Essa parte é valiosa porque muita família diz “ele falava e parou” e o instrumento ajuda a clarear se foi uma regressão verdadeira ou algo pontual de doença/estresse. 

    1. Por que precisa de formação para aplicar?
      O manual insiste nisso: o ADI-R é uma entrevista baseada no investigador. Não é só sentar e ir lendo as perguntas. É conhecer o que cada código quer dizer, saber quando um “sim” do pai na verdade é um “quase” e quando uma declaração geral (“ele não olha muito”) precisa ser transformada em episódio concreto (“me dá um exemplo?”). Por isso a orientação é que o profissional tenha treino com vídeos, supervisão e discussão de casos, para aprender a diferenciar atraso simples de “anomalia qualitativa” – que é o que realmente importa no autismo.

Isso é importante para a clínica porque garante padrão. Se todos os profissionais aplicam igual, você consegue comparar casos, revisar entrevistas antigas, discutir em equipe e até usar os dados para laudos mais robustos.

    1. O que o ADI-R considera na hora de pontuar?

O sistema de pontuação é bem claro:

0 = não tem o comportamento anômalo descrito;

1 = tem, mas pouco frequente ou pouco marcado;

2 = tem de forma clara, do jeito descrito;

3 = tem de forma ainda mais grave;

8 = não se aplica (por idade, por não falar, por não ter tido oportunidade);

9 = não se sabe.

Isso obriga o entrevistador a não chutar. Se o pai não lembra, é 9. Se a criança não tinha idade para mostrar aquilo, é 8. Parece detalhe, mas na prática é o que impede diagnósticos baseados em impressão. 

    1. Qual a utilidade na rotina da clínica?

a) Diferenciar autismo de atraso global de desenvolvimento
Muitas crianças com atraso ficam sem diagnóstico claro porque “fazem pouca coisa mesmo”. O ADI-R força a perguntar: havia anomalia de qualidade? Ele não apontava para compartilhar? Ele não fazia jogo imaginativo naquela faixa dos 4–5? Se sim, isso aproxima do espectro. Se era só atraso de fala sem essas anomalias, pode ser outro caminho.

b) Documentar para o laudo
Como o instrumento registra começo do sintoma, área de maior preocupação, regressão e comportamento atual, ele vira uma excelente fonte para montar o laudo de forma narrativa, e não só com “CID-10 F84.0”.

c) Comunicar com outros serviços
O manual inclusive cita o ADOS como instrumento complementar de observação direta. Muitas clínicas já usam ADOS ou algum protocolo de observação; o ADI-R entra como a peça que traz o histórico contado pela família. Juntos, eles fortalecem o diagnóstico.

d) Acompanhar casos mais velhos
O ADI-R permite registrar quando os pais realmente perceberam o problema (2 anos? 3? 4?) e quais eram as queixas lá atrás. Isso é ótimo quando você recebe um pré-adolescente com suspeita tardia: você volta ao passado com método.

 

    1. Pontos de atenção

– Demora: é uma entrevista longa. Então a clínica pode organizar blocos, ter entrevistadores treinados ou usar em avaliações diagnósticas completas, não em consultas breves.

– Requer cuidado com memória dos pais: o próprio manual sugere ancorar em datas importantes (aniversário, Natal, mudança de casa) para ajudar o cuidador a lembrar com mais precisão.

– Não substitui julgamento clínico: o instrumento ajuda a organizar a informação, mas quem fecha o diagnóstico é o profissional, considerando observação, escola, outros testes. 

    1. Como apresentar isso para a família?

Dá para explicar de um jeito simples:

“Hoje vamos fazer uma entrevista longa sobre o desenvolvimento dele desde pequeno. Algumas perguntas vão parecer muito específicas, mas é porque precisamos saber não só se ele fez, mas quando, quanto e como isso aconteceu. Assim conseguimos saber se é um padrão de autismo ou outra coisa.”

Quando a família entende que a entrevista está ali para defender o caso da criança – isto é, para mostrar exatamente o que ela faz e desde quando – a adesão é muito melhor.

 

 

 

 

 

 

Referência
Rutter, M., Le Couteur, A., & Lord, C. (1995). Autism Diagnostic Interview – Revised (ADI-R): Entrevista para Diagnóstico do Autismo – Revista (3ª ed.). Tradução portuguesa: Astrid Moura Vicente et al., março de 2000. Instrumento clínico estruturado para avaliação de história de desenvolvimento, comunicação, interação social e comportamentos restritos em suspeita de Transtornos do Espectro do Autismo.

Autor do post

Luiz Kennedy de Almeida Silva – Psicólogo (CRP:13/9162), Pedagogo especializado em Psicopedagogia, Coordenador ABA.

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