O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por dificuldades na comunicação social e pela presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento. Por ser um espectro, suas manifestações são amplamente variadas e influenciadas por fatores individuais, ambientais e culturais. Tradicionalmente, os estudos e diagnósticos concentram-se na infância, período em que os sinais são mais visíveis.
Contudo, o autismo acompanha o sujeito por toda a vida, o que significa que crianças autistas tornam-se adultos e, inevitavelmente, envelhecem. Apesar dessa realidade, a presença do TEA na população idosa ainda é pouco explorada, gerando um cenário de invisibilidade e desassistência.
O envelhecimento humano, por si só, traz transformações cognitivas, emocionais e físicas. No caso da pessoa autista, essas mudanças interagem com características próprias do espectro, podendo agravar dificuldades ou, em alguns casos, favorecer estratégias de adaptação adquiridas ao longo da vida. Estudos recentes revelam que, embora o número de pesquisas tenha aumentado desde 2012, apenas 0,4% das publicações em autismo se referem especificamente a pessoas idosas, demonstrando a enorme lacuna existente nesse campo (Mason et al., 2022). Esse déficit de conhecimento repercute diretamente no planejamento de serviços de saúde e de políticas públicas que contemplem essa população.
Um dos principais desafios no estudo do autismo em idosos é o diagnóstico tardio. Muitos adultos só recebem a confirmação do TEA após os 50 anos, fenômeno que alguns pesquisadores denominam de “geração perdida”. Esses indivíduos viveram grande parte da vida sem acesso a recursos de apoio, muitas vezes interpretados como excêntricos, tímidos ou isolados, sem que suas necessidades fossem compreendidas. O diagnóstico tardio, embora possa trazer alívio por oferecer explicações, também carrega implicações emocionais e práticas, como a ausência de histórico clínico detalhado, a dificuldade de acesso a intervenções específicas e a carência de profissionais especializados em envelhecimento autista
Outro aspecto importante é a comorbidade associada ao envelhecimento. Idosos autistas apresentam prevalência aumentada de condições médicas como hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares, além de maior risco para ansiedade, depressão e transtornos do sono (RIAGE, 2023). A sobreposição entre sintomas do TEA e quadros neurodegenerativos, como demências, também é um ponto de atenção. Determinar se dificuldades de memória ou de linguagem resultam do envelhecimento típico, de condições neurodegenerativas ou do próprio autismo constitui um desafio diagnóstico relevante e exige avaliação interdisciplinar cuidadosa.
O isolamento social é outra questão crítica. Estudos apontam que pessoas autistas, em geral, apresentam redes sociais menores e mais restritas. No envelhecimento, quando amigos e familiares podem falecer ou quando limitações físicas reduzem a participação comunitária, esse isolamento tende a aumentar. A ausência de suporte social consistente tem impacto direto sobre a saúde mental e a qualidade de vida. No Brasil, onde ainda há pouca visibilidade sobre o tema, idosos autistas podem ser duplamente marginalizados: por sua condição no espectro e por preconceitos associados ao envelhecimento.
Além disso, existem desafios relacionados aos arranjos residenciais e de cuidado. A literatura internacional já aponta a necessidade de repensar modelos de instituições e residenciais para incluir adaptações sensoriais, rotinas estruturadas e suporte especializado para pessoas autistas idosas. No entanto, ainda são raros os estudos que abordam como essas estruturas devem ser planejadas, especialmente em países em desenvolvimento.
Do ponto de vista da qualidade de vida, pesquisas recentes destacam que a experiência do envelhecimento autista é heterogênea. Enquanto alguns indivíduos desenvolvem mecanismos eficazes de enfrentamento e relatam maior autossuficiência, outros enfrentam barreiras significativas, como discriminação, falta de compreensão e dificuldades de acesso a serviços de saúde. O bem-estar emocional, a autonomia nas atividades diárias e a participação social são dimensões centrais que ainda carecem de investigação sistemática (Mason et al., 2022).
Outro ponto de destaque é a necessidade de metodologias participativas. O campo da pesquisa em autismo tem avançado para incluir pessoas autistas como protagonistas na produção científica, o que contribui para estudos mais alinhados às demandas reais da comunidade. No caso do envelhecimento, ouvir diretamente idosos autistas sobre suas experiências, expectativas e necessidades pode gerar evidências mais robustas para orientar políticas públicas e práticas clínicas.
No Brasil, a produção científica ainda é incipiente, mas alguns estudos recentes, como o publicado na Revista Ibero-Americana de Gerontologia (2023), têm buscado trazer visibilidade ao tema. Esses trabalhos reforçam que, sem dados específicos sobre a população idosa no espectro, o país corre o risco de perpetuar a exclusão dessa parcela da sociedade em programas e políticas voltados ao envelhecimento ativo e saudável.
Em síntese, o autismo em idosos configura um campo emergente e de alta relevância social. Os principais desafios identificados são:
- Diagnóstico tardio e dificuldades diferenciais com demências.
- Comorbidades médicas e psiquiátricas associadas ao envelhecimento.
- Isolamento social e precariedade das redes de apoio.
- Ausência de arranjos residenciais adaptados.
- Escassez de pesquisas no contexto brasileiro.
Conclui-se que compreender o autismo no envelhecimento é essencial para promover inclusão, autonomia e qualidade de vida. O crescimento das pesquisas internacionais nos últimos dez anos demonstra avanços, mas ainda insuficientes frente às demandas da população idosa. É urgente investir em estudos longitudinais, políticas específicas e estratégias participativas que deem voz aos idosos autistas. Apenas assim será possível construir um futuro em que o envelhecer no espectro seja compreendido, respeitado e apoiado de forma digna.
Referências
Mason, D., Stewart, G. R., Capp, S. J., & Happé, F. (2022). Older age autism research: A rapidly growing field, but still a long way to go. Autism in Adulthood, 4(2), 164–172. https://doi.org/10.1089/aut.2021.0041
Revista Ibero-Americana de Gerontologia. (2023). Visualização de desafios do transtorno do espectro autista na população idosa. RIAGE – Revista Ibero-Americana de Gerontologia, 1(1), 1–15.
Autor do post:
Laryssa Bonifácio – Pedagoga, Psicopedagoga Clínica e Institucional e Coordenadora ABA.
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