Camuflar traços do autismo: por que o questionário CAT-Q é tão importante na vida adulta?

O documento que estamos apresentando neste texto é o Camouflaging Autistic Traits Questionnaire (CAT-Q), um questionário internacionalmente usado para avaliar justamente isso: o quanto uma pessoa “se esforça” para parecer socialmente típica, escondendo ou adaptando seus traços autísticos. É uma ferramenta de rastreio, não um diagnóstico, mas ajuda muito a entender o que está acontecendo com aquele adulto que vive dizendo: “eu funciono… mas é cansativo demais”.

Vamos te explicar o que é camuflamento, como o CAT-Q funciona e por que clínicas e profissionais que atendem adultos com suspeita de TEA deveriam olhar com carinho para esse material.

 

  • O que é “camuflar” traços autísticos?

Camuflar (ou mascarar) é quando a pessoa modifica de forma consciente ou semiconsciente seu jeito natural de interagir para caber melhor nas expectativas sociais. É como “atuar” um papel social.

Exemplos muito comuns que aparecem no CAT-Q:

Copiar expressões faciais e gestos da outra pessoa; treinar antes o que vai dizer; forçar contato visual mesmo achando desconfortável; monitorar o tempo todo se está “parecendo interessado”; estudar regras sociais em filmes e séries para depois usar na vida real; sentir que está “performando” em vez de sendo ela mesma.

Perceba: não é só timidez. É um esforço contínuo de autoregulação social.

Esse esforço pode ser tão bem-sucedido que muita gente ao redor nem percebe que aquela pessoa pode estar no espectro. Só que por dentro o custo é enorme: cansaço, exaustão social, ansiedade, sensação de não pertencimento e às vezes até episódios de burnout autista.

– Por que isso acontece mais em adultos (e especialmente em mulheres e pessoas bem adaptadas)?

Ao longo da vida, as regras sociais vão ficando mais complexas: trabalho, faculdade, namoro, atendimento ao público, reuniões, networking… quem tem dificuldades de comunicação social aprende rápido que “ser diferente” pode gerar críticas, exclusão ou até prejuízo profissional. Então muitas pessoas no espectro desenvolvem estratégias de compensação.

Alguns grupos parecem camuflar mais:

– Mulheres e pessoas socializadas como mulheres;

– Pessoas com boa linguagem e boa inteligência verbal;

– Quem passou a vida ouvindo “você é inteligente, se esforce”;

– Quem foi punido ou corrigido por estereotipias e interesses restritos.

Para esses adultos, o camuflamento vira quase automático. E é aí que o diagnóstico pode atrasar: o profissional vê uma pessoa educada, que olha nos olhos, que sabe “o que dizer”… e conclui “não parece autista”. Mas “não parecer” não é o mesmo que “não ser”.

 

  • O que o CAT-Q avalia?

O questionário traz 25 itens com respostas de “discordo totalmente” a “concordo totalmente”. Cada item descreve um comportamento típico de camuflamento, por exemplo:

“Em situações sociais, sinto que estou ‘atuando’ em vez de ser eu mesmo.”

“Eu monitoro minha linguagem corporal para parecer relaxado.”

“Eu já desenvolvi roteiros para usar em situações sociais.”

“Eu aprendo como as pessoas se comportam vendo filmes e séries.”

A pessoa seleciona o quanto aquilo combina com ela. A partir disso, o profissional consegue ter uma medida do nível de camuflamento daquela pessoa. Não é para “pegar no flagra”, é para compreender o esforço social que está escondido atrás de uma interação aparentemente normal.

 

  • O que esse resultado significa na prática?

Ajuda no raciocínio diagnóstico
Um adulto que pontua alto em camuflamento pode ter aprendido a compensar dificuldades sociais típicas do autismo. Então, se ele relata sobrecarga, fadiga após interação e sensação de “não ser ele mesmo”, isso passa a fazer sentido dentro do quadro.

Previne conclusões erradas
Sem essa informação, o profissional pode dizer: “não é autismo, é só ansiedade social”. Mas às vezes a ansiedade social é consequência de anos de camuflamento, e não a causa central.

Direciona o tratamento
Se o sujeito passa o dia inteiro performando, talvez o foco da intervenção não seja “socializar mais”, mas criar contextos seguros onde ele possa reduzir o camuflamento, negociar exigências sociais e aprender formas mais econômicas de interação.

Valida a experiência da pessoa
Muitos adultos no espectro dizem: “ninguém acredita que é difícil para mim, porque eu faço parecer fácil”. Mostrar o resultado do CAT-Q é uma forma de dizer: “eu vejo o seu esforço”.

 

  • Por que é uma ferramenta interessante para uma clínica?

– É simples e rápida: a pessoa pode responder antes ou durante a consulta.

– É específica: não é só “você tem dificuldade social?”, é “você está escondendo dificuldade social?”.

– É alinhada com a literatura atual: o estudo que validou o CAT-Q mostra que camuflar é um fenômeno real e clinicamente relevante em autismo adulto.

– Dá linguagem para conversar com a família: quando o parceiro, mãe ou gestor não enxergam o autismo porque a pessoa “funciona”, o profissional pode explicar: “funciona porque se esforça muito”.

A longo prazo, muitos adultos descrevem:

– Esgotamento após eventos sociais;

– Dificuldade de manter múltiplos papéis (trabalho + família + social);

– Sensação de viver “desalinhado” de quem realmente é;

– Maior vulnerabilidade a ansiedade e depressão.

Quando a clínica reconhece o camuflamento, ela pode propor metas mais realistas: não “você tem que agir como todo mundo sempre”, mas “vamos achar espaços onde você possa ser mais autêntico e ainda assim se comunicar bem”.

 

  • Como usar o CAT-Q de forma ética

– Não é diagnóstico
O resultado não deve ser usado sozinho para dizer “você é autista” ou “você não é autista”. Ele entra junto de entrevista clínica, história de desenvolvimento, relatos de terceiros e outras escalas.

– Explique o que está sendo medido
Algumas pessoas podem se sentir julgadas (“então eu estou fingindo?”). É importante dizer que camuflar foi uma estratégia de adaptação, muitas vezes necessária.

– Use o resultado para empoderar
Em vez de “você camufla demais”, algo como: “olha quanto esforço você faz. Vamos pensar em contextos onde esse esforço possa ser menor?”

– Proteja a privacidade
Como o instrumento fala de práticas sociais bem íntimas (ensaiar falas, evitar contato, esconder desconfortos), é importante que seja usado em ambiente seguro e sigiloso.

 

  • Para quem esse questionário é indicado?

– Adultos que chegaram com suspeita de TEA, mas “não parecem” autistas à primeira vista;

– Mulheres e pessoas não binárias que relatam histórico de adaptação social intensa;

– Adultos que dizem: “eu sei conviver, mas acaba comigo”;

– Pessoas que receberam diagnóstico tardio e querem compreender sua trajetória;

– Casos em que a família não vê os traços, mas o profissional desconfia de autismo de alto funcionamento.

E depois do resultado?

O ideal é que a clínica ofereça uma devolutiva clara: explicar o que é camuflamento; mostrar quais itens a pessoa marcou que são mais fortes; relacionar isso ao dia a dia dela (trabalho, relacionamentos, rotina);

propor caminhos: psicoeducação sobre TEA na vida adulta, treino de habilidades sociais mais autênticas, organização de ambiente, suporte à família, e, quando for o caso, encaminhamento para avaliação diagnóstica completa.

Conclusão

O Camouflaging Autistic Traits Questionnaire (CAT-Q) é uma ferramenta moderna que ajuda a revelar algo que muitas vezes fica escondido: o trabalho silencioso que algumas pessoas fazem todos os dias para parecer “dentro do padrão”. Em uma clínica que cuida de autistas – inclusive adultos que só agora estão se reconhecendo – esse tipo de instrumento amplia o olhar, evita equívocos diagnósticos e, principalmente, humaniza a compreensão: se a pessoa está cansada, não é fraqueza, é esforço acumulado.

Trazer esse tema é dizer para esses adultos: nós sabemos que você está aí, sabemos que você aprendeu a se adaptar… e sabemos que isso tem um preço. Vamos falar sobre isso.

 

Referência:

Hull, L., Mandy, W., Lai, M.-C., Baron-Cohen, S., Allison, C., Smith, P., & Petrides, K. V. (2019). Development and validation of the Camouflaging Autistic Traits Questionnaire (CAT-Q). Journal of Autism and Developmental Disorders, 49(3), 819–833.

Autor do post:
Luiz Kennedy de Almeida Silva – Psicólogo (CRP:13/9162), Pedagogo especializado em Psicopedagogia, Coordenador ABA.

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