Por que falar sobre leitura no autismo?
A leitura é uma das habilidades acadêmicas mais valorizadas e que mais impactam a vida de qualquer pessoa. Ela permite compreender melhor o mundo, ampliar interações sociais e acessar conteúdos mais complexos na escola. Na vida adulta, favorece autonomia, participação no mercado de trabalho e tomada de decisões informadas.
No caso de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o ensino da leitura ganha relevância especial. Por um lado, dificuldades de linguagem, atenção e generalização podem comprometer a alfabetização. Por outro, estudos mostram que, com métodos adequados e individualizados, muitas crianças e jovens com autismo conseguem não apenas decodificar palavras, mas também compreender o que leem.
O desafio está em reconhecer que não existe um “padrão único” de aprendizagem para essa população. A heterogeneidade do espectro exige que educadores e terapeutas ajustem suas estratégias a partir do perfil, das habilidades prévias e dos interesses do aprendiz.
O que a ciência já sabe sobre leitura no autismo
Pesquisas indicam um padrão recorrente: pessoas com autismo tendem a apresentar melhor desempenho na leitura oral (pronunciar corretamente a palavra escrita) do que na leitura com compreensão (entender o que está sendo lido). Isso significa que, muitas vezes, a criança consegue “ler” palavras, mas sem necessariamente associá-las ao seu significado.
Essa diferença está ligada a desafios na formação de relações simbólicas — a capacidade de conectar estímulos arbitrários, como uma palavra impressa e a figura que ela representa. No TEA, déficits na linguagem e na generalização podem dificultar essa aprendizagem, afetando diretamente a compreensão leitora.
Outro dado importante é que a alfabetização precoce — por volta dos 4 ou 5 anos — aumenta a chance de acompanhar o ritmo escolar, dando mais tempo para lidar com dificuldades antes que se tornem barreiras acadêmicas e sociais significativas.
Por que isso acontece? Modelos explicativo
Três fatores se destacam como explicações recorrentes para as dificuldades na leitura com compreensão em pessoas com TEA:
1. Déficits de linguagem e comunicação – Dificuldade em associar palavras a significados e em utilizar a linguagem de forma funcional impacta a leitura interpretativa.
2. Limitações na formação de classes de estímulos equivalentes – Mesmo após ensinar relações simples (por exemplo, figura–palavra), nem sempre ocorre a “transferência” para novas combinações, como ler a palavra na ausência da figura.
3. Diferenças na aprendizagem de relações auditivo-visuais – Muitas pessoas com autismo aprendem com mais facilidade quando o treino é visual-visual (ex.: figura–figura) do que quando envolve estímulos auditivos.
Essas características reforçam a necessidade de métodos de ensino graduais, com uso intensivo de pistas visuais e progressão controlada da dificuldade.
O que as pessoas autistas e suas famílias relatam
Pais e adultos autistas descrevem experiências bastante variadas com a leitura. Alguns relatam fascínio por palavras impressas, mesmo antes de compreender seu significado; outros vivenciam frustração por conseguirem decodificar, mas não aproveitar o texto.
Relatos frequentes incluem:
> Interesse precoce por letras e palavras sem vínculo direto com leitura funcional.
> Facilidade em memorizar palavras isoladas (leitura global), mas dificuldade em generalizar para novas palavras.
> Progresso mais rápido com materiais significativos — nomes de familiares, objetos favoritos, temas de interesse.
Essas observações reforçam o valor de um ensino centrado na relevância pessoal e no engajamento do aprendiz.
Mitos e realidades sobre alfabetização no TEA
Um dos equívocos mais comuns é acreditar que apenas pessoas verbais podem aprender a ler. Embora a ausência de fala limite a leitura oral, recursos como Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) permitem que não falantes desenvolvam reconhecimento de palavras e uso funcional da leitura.
Outro mito é que “ensinar letras primeiro” é sempre a melhor rota. A pesquisa mostra que, para muitos aprendizes com autismo, começar por sílabas simples ou associações figura–palavra acelera o progresso e evita sobrecarga cognitiva.
Além disso, forçar métodos exclusivamente auditivos ou muito rápidos tende a reduzir a eficácia. O avanço depende de passos curtos, alta previsibilidade e reforço positivo.
O que funciona em intervenção?
Estudos nacionais e internacionais destacam alguns elementos-chave para o sucesso:
> Treino de pré-requisitos: antes de iniciar a alfabetização, garantir que o aprendiz consiga permanecer em atividade, emparelhar palavras e nomear figuras/vogais.
> Uso de emparelhamento multimodelo: apresentar figuras e palavras lado a lado, permitindo múltiplas correspondências por tentativa, aumenta a taxa de acertos em relação ao modelo tradicional.
> Ensino de nomeação: fortalecer a habilidade de nomear figuras e vogais facilita a compreensão e a generalização.
> Estímulos familiares e motivadores: palavras e imagens ligadas aos interesses da criança aumentam engajamento e retenção.
> Progressão gradual: iniciar com habilidades rudimentares (figura–palavra), avançar para sílabas simples e só depois para estruturas mais complexas.
Um exemplo bem documentado é o uso de emparelhamento multimodelo associado a reforço positivo, que resultou em melhora significativa da leitura oral e da compreensão em crianças autistas, inclusive para um participante não falante.
Implicações para profissionais
Com base nas evidências, algumas diretrizes se destacam:
> Personalizar o ensino: respeitar ritmo, interesses e perfil sensorial do aprendiz.
> Valorizar a funcionalidade: priorizar palavras e contextos relevantes para a vida diária.
> Evitar práticas aversivas ou rígidas: a leitura deve ser uma fonte de autonomia e prazer, não de estresse.
> Integrar família e escola: manter consistência nos materiais e métodos.
> Documentar progressos e barreiras: ajustar intervenções com base em dados objetivos.
Ao unir ciência, sensibilidade e adaptação, é possível transformar o aprendizado da leitura em uma ponte para maior participação social e independência — garantindo que a alfabetização no TEA seja não apenas possível, mas significativa.
Autor do post:
Luiz Kennedy de Almeida Silva – Psicólogo (CRP:13/9162), Pedagogo especializado em Psicopedagogia, Coordenador ABA.
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