Flexibilidade psicológica em crianças: por que o Children’s Psychological Flexibility Questionnaire (CPFQ) é tão útil na clínica?

O Children’s Psychological Flexibility Questionnaire (CPFQ), criado por Mark R. Dixon e Dana Paliliunas (2017), é justamente uma ferramenta pensada para isso: medir, de forma simples, o quanto uma criança está conseguindo ser flexível psicologicamente – que é o coração da ACT. Ele pode ser lido ou aplicado oralmente, tem linguagem acessível e já vem organizado pelos seis processos centrais da ACT. Para uma clínica que trabalha com desenvolvimento infantil, TEA, TDAH ou dificuldades emocionais, é um material que vale muito a pena incluir no protocolo.

Vamos destrinchar.

O que é flexibilidade psicológica em linguagem de clínica infantil?

Na ACT, flexibilidade psicológica é a capacidade de notar o que está acontecendo por dentro (pensamentos, sentimentos, sensações), aceitar que isso existe, desfusar de ideias rígidas (“se eu errei, sou ruim”), lembrar que existe um eu que observa e, mesmo assim, escolher agir em direção ao que é importante. Parece muito para uma criança? O questionário mostra que dá para avaliar isso, sim, usando perguntas concretas.

Quando uma criança é mais flexível psicologicamente, ela:

    • Tenta de novo quando erra;
    • Entende que sentir medo não a torna “errada”;
    • Não acredita em todo pensamento que aparece;
    • Sabe o que é importante para ela hoje (valores infantis);
    • Consegue prestar atenção no que está acontecendo agora.

Quando é menos flexível, vemos o contrário:

    • Se define pelo erro (“se fiz algo ruim, sou ruim”);
    • Evita ou se irrita com sentimentos;
    • Acredita que pensamento manda nela;
    • Gruda em rótulos dos outros;
    • Desiste rápido quando fica difícil.

Ou seja, o questionário não está medindo “inteligência” nem “comportamento bonzinho”, ele está medindo maneira de se relacionar com a própria experiência interna – que é algo que muitas crianças com ansiedade, TEA, dificuldades de regulação ou histórico de crítica parental têm dificuldade de fazer.

Como o questionário funciona?

O CPFQ tem 24 itens. Cada item a criança responde dizendo se aquilo acontece nunca, um pouquinho, às vezes, bastante ou o tempo todo (0 a 4). O aplicador pode ler e mostrar uma escala visual (o documento já traz uma) para facilitar a escolha, o que é ótimo para crianças menores ou com dificuldade de leitura.

Depois da aplicação, o próprio documento traz uma tabela para o profissional anotar os pontos e já agrupar pelos seis processos da ACT:

> Estar no momento presente (present moment)

> Aceitação

> Desfusão (não colar no pensamento)

> Eu como contexto (self-as-context)

> Valores

> Ação com compromisso (committed action)

Alguns itens são invertidos (o documento mostra isso em cinza e dá a tabelinha de inversão), porque são frases que indicam inflexibilidade, como “se eu faço algo ruim, então sou uma pessoa ruim” ou “nada importa tanto assim”. Esses têm que ser recodificados: se a criança marcou 4 (“o tempo todo”), na verdade isso conta como 0 de flexibilidade. O material já explica isso passo a passo.

No final, você pode:

> Somar por processo (isso te diz onde ela está mais travada);

> Somar tudo (isso te dá um índice geral de flexibilidade psicológica).

Pontuações maiores = mais flexibilidade.
Pontuações menores = mais rigidez.

Por que isso é tão útil na prática clínica?

1. Porque crianças também se definem pelo erro.

Veja o item 4: “Se eu faço algo ruim, então eu sou uma pessoa ruim.” Isso é exatamente o tipo de fusão cognitiva que a ACT trabalha. Se a criança concorda com isso “muito” ou “o tempo todo”, o profissional já sabe que precisa de treino de desfusão e de distinção entre comportamento e identidade.

2. Porque dá para pegar crianças que evitam emoção.

Itens como “É ok ter medo” ou “É ok ficar com raiva” medem aceitação emocional. Crianças que aprendem cedo que “não pode chorar”, “engole o choro”, “menino não sente medo” tendem a marcar mais baixo aqui. Isso aponta para a necessidade de psicoeducação emocional.

3. Porque atenção plena também é avaliada.

O questionário pergunta se a criança nota o que está acontecendo ao redor ou se “perde” o que o outro falou. Isso é ouro para casos de TDAH, TEA e dificuldades de autorregulação, porque mostra que o treino de presença não é só “bonito”, ele é necessário.

4. Porque ACT não é só “aceitar”, é agir com sentido.

Os itens sobre valores e ação comprometida perguntam se a criança “sabe pelo que quer trabalhar hoje” e se “tenta de novo quando perde”. Isso ajuda muito em planejamento de sessão: se ela não sabe o que é importante, você trabalha valores infantis (amizade, aprender, brincar bem, ajudar). Se ela sabe, mas desiste rápido, você trabalha persistência e tolerância ao desconforto.

Como encaixar o CPFQ no fluxo da clínica?

Uma clínica que já trabalha com programas comportamentais, regulação emocional, habilidades sociais ou ACT pode usar o CPFQ em três momentos:

– Avaliação inicial / triagem ampliada
Além de mapear comportamento, família e escola, você aplica o CPFQ para entender como essa criança lida com pensamentos e sentimentos. Isso é ótimo quando o problema chega como “ele explode do nada” ou “ela se culpa demais”.

– Planejamento de intervenção baseada em processos
Se a pontuação baixa foi em desfusão, você inclui jogos de desfusão. Se foi em aceitação, inclui atividades de “tudo bem sentir”. Se foi em valores, inclui “o que é importante para mim na escola/na família”. O questionário praticamente aponta o caminho da sessão.

– Reavaliação / acompanhamento de progresso
Depois de algumas semanas ou meses de intervenção ACT-informada, você reaplica. Se o escore geral subiu, quer dizer que a criança está mais flexível – mesmo que o comportamento-alvo ainda esteja em andamento. Isso dá um marcador de processo, não só de topografia.

O bom é que o próprio material já organiza os itens por processo e já oferece a escala visual, o que facilita muito para quem aplica com crianças menores ou com dificuldades de leitura. Ele também deixa claro que escores mais altos significam maior flexibilidade, e que a soma de todos os itens gera um “Psychological Flexibility Total Score”. Para quem faz supervisão ou trabalha com equipe, isso padroniza a linguagem e diminui variação entre aplicadores.

Alguns exemplos clínicos de leitura do resultado

Criança que pontua baixo em “é ok sentir medo/raiva” e alto em “se choro é porque estou errado”

perfil de evitação emocional e autocrítica. Intervenções: normalização de emoções, escala de sentimentos, ACT com metáforas simples (onda, trânsito de pensamentos).

Criança que pontua baixo em “percebo o que está acontecendo ao meu redor”

precisa de treino de presença/atenção, mindfulness adaptado para criança, jogos de observar 5 coisas, brincar de “detetive”.

Criança que pontua baixo em valores (“nada importa muito para mim”)

pode estar desmotivada, deprimida ou apenas sem clareza de reforçadores sociais/escolares. A clínica pode introduzir atividades de escolha, lista de coisas legais, mural de objetivos do dia.

Criança que pontua alto em “meus pensamentos dizem o que tenho que fazer”

forte fusão cognitiva. Aqui entram técnicas de desfusão: dar nome ao pensamento, falar o pensamento com voz de desenho, colocar pensamento no balão, etc.

 

Por que isso combina com ABA/AT/psicologia infantil?

Muitos serviços que atendem crianças com TEA e TDAH já trabalham em contextos estruturados de ensino. O CPFQ permite adicionar uma camada de processos psicológicos sem perder a objetividade. Você continua tendo dado: somou, registrou, comparou. Mas agora você sabe se a criança está aprendendo a se relacionar melhor com o que sente e pensa – que é o que, no fim, sustenta a generalização de habilidades.

Além disso, como o instrumento foi feito por analistas do comportamento (Dixon e Paliliunas), ele já vem com aquela lógica de medir, somar, categorizar por processo, o que facilita muito para clínicas que trabalham com supervisão, planos individualizados e formação de equipe.

 

Cuidados na aplicação

Modo de aplicação: o documento permite escrito ou oral. Para muitas crianças, o melhor é oral + escala visual.

Ambiente seguro: algumas perguntas falam de erro, de “ser ruim”, de ficar bravo consigo mesmo. Faça em ambiente acolhedor.

Não transformar em prova: explique que não tem certo e errado, é só para o profissional entender como ajudar.

Usar na devolutiva com os pais: mostrar que a criança não está “desobedecendo porque quer”, mas às vezes porque está muito colada no pensamento ou porque acha que sentir é errado.

 

Referência:
Dixon, M. R., & Paliliunas, D. (2017). Children’s Psychological Flexibility Questionnaire (CPFQ). Instrumento de avaliação clínica baseado nos seis processos centrais da Terapia de Aceitação e Compromisso para uso com crianças.

Autor do Post:
Luiz Kennedy de Almeida Silva – Psicólogo (CRP:13/9162), Pedagogo especializado em Psicopedagogia, Coordenador ABA.

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